01 julho 2009

Vôo livre

A cena esfuziante fazia contraste com a manhã fria e escura da cidade grande. Entre carrancudos casacos deslizando apressados, o menino ocupava um exagerado espaço na calçada, com seus braços cortando o ar como asas de um avião, desgovernados de alegria por ver o amigo chegando de carro. Como se a pequena distância que os separava não fosse suficiente para a performance que o momento exigia, o menino, com os braços em vôo, ocupava toda a extensão da calçada, ziguezagueando como uma libélula em direção ao carro. Aos gritos, parou em pleno vôo no exato momento em que a porta se abriu, para ajudar o amigo a carregar o material de escola.

Sorri de modo complacente diante da cena infantil. Talvez porque o que vivenciara no dia anterior, em viagem de trabalho, era o oposto da expressão emocional desbregada da criança. Na luta selvagem da vida, onde os companheiros de equipe podem ser os futuros contendores de minha carcaça, minha guarda ficara fechada, deixando passar de maneira filtrada apenas o que interessava para meu objetivo com eles naquela viagem.

À noite, tive meu sonho recorrente. Sempre com esforço, e devagar, como que galgando o ar como se fosse uma montanha íngreme, fui me elevando aos poucos, batendo os braços como se fossem asas de um pássaro, subindo um pouco acima dos telhados das casas (no meu sonho não existem prédios) para conseguir uma visão do horizonte, para qualquer direção que eu me voltasse.

Na madrugada incerta, sinto minhas costas incômodas dentro do casulo que fiz com meu edredom. Viro-me de lado, mas a sensação como de uma leve coceira não passa. Levanto-me sonâmbulo de sono, tropeçando nas brumas pálidas da noite. No corredor, surpreendo-me com a imagem de perfil que aparece no espelho. Estaco e miro espantado minhas costas: como frágeis folhas de avenca, duas protuberâncias despontam à altura de minhas escápulas.

25 junho 2009

A folha de bananeira



"O local era um sítio, com algum verde. Depois de algumas orientações, nos separamos e ficamos por duas horas isolados.

Fiquei na parte elevada, só olhando a paisagem e meditando.

Aos poucos fui percebendo o movimento da natureza: calmo, mas vivo e cheio de detalhes. Ela tem seu ritmo, como uma melodia tranquila, e nos leva à contemplação e reflexão.

No local havia muitas bananeiras. Vendo de longe uma delas, percebi que somente uma folha fazia ondulações em meio à paisagem estática. Deduzi que soprava uma leve brisa sobre ela.

Então me veio à lembrança o trecho de Elias na caverna, onde Deus não estava no vento fortíssimo, no terremoto, nem no fogo, mas na brisa (1 Reis 19:11,12). E me veio um ensinamento: assim como a brisa toca somente a folha, assim também eu trato com você de maneira particular. Não se preocupe com os outros: eu estou cuidando de você."

O texto acima é parte do relato por e-mail que fiz à minha amiga sobre o insight que tive olhando aquela paisagem bucólica. Naquela época havia acabado de voltar de uma viagem longa ao exterior e enfrentava um momento difícil no trabalho. Cansado pelos compromissos, interpretei que seria cuidado de maneira singular, apesar do ar rarefeito que respirava no momento.

Mas então minha mãe faleceu três meses depois, deixando uma surpreendente lacuna em minha vida.

A lembrança da experiência e a atualização do significado daquela folha de bananeira ondulando ao sabor da brisa suave vieram através do calendário em formato triangular que minha amiga fez para mim no começo deste ano. Em uma face, os dias do ano, e em outro, o texto e a foto que reproduzo acima.

Ao reler o texto quase esquecido que havia mandado para ela e que agora recebia de volta, entendi então que, como profecia de duplo cumprimento, o significado do insight que havia tido naquele dia não falava somente generalidades sobre o cuidado e proteção de Deus no momento profissional que vivia. O significado mais profundo era que Ele cuidaria de mim de maneira especial, durante e após a partida de minha mãe.

Minha amiga tinha pressa para me entregar o calendário, já que, segundo ela, era um presente de duração limitada.

Não penso assim. Colocado sobre a mesa do escritório, com a face do texto voltada para mim, ele é um memorial a ser guardado para toda vida.

24 junho 2009

Presente perfeito


A doença de sua mãe, dizia, tinha chegado em nível terminal, depois de anos de intensa batalha. As dores, como ondas gigantescas, chegavam insuportáveis nos momentos de pico, mas nem a aplicação de morfina parecia ajudar muito.

Ela, que por formação e personalidade sabia chegar fácil a um estado de resignação, nem por isto deixava de sofrer. Era uma dor de difícil localização e origem, marcando corpo e alma pelas horas insones ao lado de sua mãe, achando fantasmas de culpa por se sentir impotente em aliviar o sofrimento, estupefata pela inversão de papéis nos últimos dias entre elas. Não é a mãe que sempre deve oferecer colo para a filha?

Enquanto ouvia seu relato transbordante de emoções contidas, sentia dentro de mim cordas de um violão reverberando sozinhas, chamando lembranças profundas da partida de minha mãe, apenas meio ano atrás, por causa da mesma doença.

Por já ter vivido isto, o desdobramento da história me parecia um horizonte já visto, mesmo sabendo que cada por de sol é único. Achando pontos de identificação no que dizia, imaginei que talvez pudesse dividir um pouco com ela este momento difícil, em orações e escuta atenta.

Mas havia outro motivo por que me sentia ligado a esta história de luta contra a doença . Quando falava sobre a situação de sua mãe, o fazia com tanto carinho e consideração que fazia-me sentir estar ouvindo a história de uma pessoa importante, digna de todo meu respeito e atenção.

E então veio a notícia inevitável, prevista e surpreendente, que me fez desmarcar compromissos inadiáveis para me despedir daquela que nunca havia tido oportunidade de conhecer.

No velório, uma multidão de gente que parecia dizer com sua presença que estavam lá acima de tudo por causa deles mesmos, pelo sentimento de perda que cada um tinha, pelas lágrimas derramadas pela dor que vinha não de fora deles, mas de dentro de cada um. Não era demonstração apenas de solidariedade, mas de luto pessoal.

As duas irmãs estavam postadas nos lados da mãe, guardiãs protetoras de seu descanso. Suas mãos deslizavam de maneira suave sobre o rosto, num embalo de ninar, como que tocando um bem precioso.

Chegara a hora. No silêncio profundo da despedida, quando palavras são frágeis demais para carregar intensos sentimentos, sonoros estalos, longos e dedicados. Prolongados beijinhos, gordos de carinho, cobriam as duas faces da mãe , como que fazendo consolo a um bebê ferido.

Naquele momento entendi qual é o último presente que gostaria de ganhar na minha vida.

17 junho 2009

Imagem e Representação (2)


Dietrich Bonhoeffer participou do movimento de resistência alemã contra o nazismo, sendo preso por isto. Na prisão, exerceu grande influência sobre seus companheiros com sua coragem e postura serena. Dois anos depois foi executado. O médico da prisão que assistiu ao seu enforcamento escreveu sobre o dia:
“Eu vi o pastor Bonhoeffer .... ajoelhado no chão orando de maneira intensa a Deus. Fiquei profundamente impressionado pela maneira como este amoroso homem orava, tão devoto e tão certo de que Deus ouvia sua oração. No lugar da execução, ele fez uma curta prece, e então galgou os poucos degraus até o local, corajoso e controlado. Sua morte aconteceu em poucos segundos. Nos cinquenta anos que trabalhei como médico, raramente vi um homem que morreu como ele, tão inteiramente submisso à vontade de Deus.”

Apesar da avaliação externa positiva, ele tinha consciência do perigo da imagem e representação que poderia se imiscuir no meio de boas intenções, enganando a todos e a si mesmo. A luta, e a solução que ele encontrou, estão num poema escrito por ele na prisão, em 1944:

Quem sou eu?

Quem sou eu? Seguidamente me dizem
que saio da minha cela
tão sereno, alegre e firme
qual dono de um castelo.

Quem sou eu? Seguidamente me dizem
que da maneira como falo
aos guardas, tão livremente,
como amigo e com clareza
parece que esteja mandando.

Quem sou eu? Também me dizem
que suporto os dias do infortúnio
impassível, sorridente e com orgulho
como um que se acostumou a vencer.

Sou mesmo o que os outros dizem de mim?
Ou apenas sou o que sei de mim mesmo?
Inquieto, saudoso, doente,
como um passarinho na gaiola,
sempre lutando por ar, como se me sufocassem,
faminto de cores, de flores, às vezes de pássaros.
Sedento por palavras boas, por proximidade humana,
tremendo de ira a respeito da arbitrariedade e ofensa mesquinha,
nervoso na espera de grandes coisas,
em angústia impotente pela sorte de amigos distantes,
cansado e vazio até para orar, para pensar, para produzir,
desanimado e pronto para me despedir de tudo?

Quem sou eu? Este ou aquele?
Sou hoje este e amanhã um outro?
Sou porventura tudo ao mesmo tempo?
Perante os homens um hipócrita?
E um covarde, miserável diante de mim mesmo?
Ou será que aquilo que ainda em mim perdura,
seja como um exército em derradeira fuga,
à vista da vitória já ganha?
Quem sou eu?
A própria pergunta nesta solidão,
de mim parece pretender zombar.
Quem quer que eu seja,
tu me conheces, oh, meu Deus,
SOU TEU.

Imagem e Representação


Enquanto decidia fazer o blog, fui encorajado por minha amiga a tomar alguns cuidados na postagem: nunca escrever deprimido, não revelar os personagens deste meu universo, ter uma identidade específica. A primeira regra é uma questão de educação (ninguém merece: o melhor amigo, o ilustre desconhecido virtual, e talvez nem mesmo papai e mamãe). A segunda pode ser motivada pelo respeito à privacidade (minha e dos que me cercam). A terceira visa procurar garantir um perfil estável a quem acessa.

Mais ou menos assim?

Talvez mais do que assim.

A experiência de postar tem me levado a questionar sobre o quanto de mim aparece para as pessoas que me cercam. Quando me apresento a elas, sou eu mesmo, ou um produto?

Tomando uma pequena luz que talvez me ajude nesta expedição nas complicadas profundezas interiores, por estes dias comecei a fazer uma endoscopia de alma através de duas palavras: imagem e representação.

A representação, no uso das artes cênicas, é o ofício de interpretar papéis dentro do palco. Uma qualidade de um bom ator seria a capacidade de ser convincente, isto é, a habilidade de ocultar seu verdadeiro ser por trás do papel que atua, de tal maneira que quem assiste confunde o personagem com o ator. Outra qualidade seria a versatilidade. Entre uma peça e outra, ele não troca somente de roupa, mas despe-se do personagem antigo e reveste-se de outro, transmutando-se.

A imagem, deixando de lado a definição filosófica e usando-a nos termos do senso comum atual, seria a aparência escolhida para ser vista pelos demais. Um ângulo, geralmente o mais favorável, um personagem dentre os muitos que habitam em cada um de nós, de acordo com a ocasião e conveniência do momento.

Claro que nem sempre as distinções que fazemos no mundo das letras correspondem ao intrincado mundo das coisas de fato. A representação sempre carrega o personagem, e a imagem captada pode ser um embuste com selo falsificado de autenticidade.

Procurando levantar camadas que se sobrepõe como feixes entrelaçados sobre mim, me esforço por apresentar aqui uma de minhas imagens. Ela é parcial, mas espero que ainda assim verdadeira. Gostaria de nunca postar uma representação minha. Não teria sentido, e seria, para mim, uma espécie de morte.