01 julho 2009

Vôo livre

A cena esfuziante fazia contraste com a manhã fria e escura da cidade grande. Entre carrancudos casacos deslizando apressados, o menino ocupava um exagerado espaço na calçada, com seus braços cortando o ar como asas de um avião, desgovernados de alegria por ver o amigo chegando de carro. Como se a pequena distância que os separava não fosse suficiente para a performance que o momento exigia, o menino, com os braços em vôo, ocupava toda a extensão da calçada, ziguezagueando como uma libélula em direção ao carro. Aos gritos, parou em pleno vôo no exato momento em que a porta se abriu, para ajudar o amigo a carregar o material de escola.

Sorri de modo complacente diante da cena infantil. Talvez porque o que vivenciara no dia anterior, em viagem de trabalho, era o oposto da expressão emocional desbregada da criança. Na luta selvagem da vida, onde os companheiros de equipe podem ser os futuros contendores de minha carcaça, minha guarda ficara fechada, deixando passar de maneira filtrada apenas o que interessava para meu objetivo com eles naquela viagem.

À noite, tive meu sonho recorrente. Sempre com esforço, e devagar, como que galgando o ar como se fosse uma montanha íngreme, fui me elevando aos poucos, batendo os braços como se fossem asas de um pássaro, subindo um pouco acima dos telhados das casas (no meu sonho não existem prédios) para conseguir uma visão do horizonte, para qualquer direção que eu me voltasse.

Na madrugada incerta, sinto minhas costas incômodas dentro do casulo que fiz com meu edredom. Viro-me de lado, mas a sensação como de uma leve coceira não passa. Levanto-me sonâmbulo de sono, tropeçando nas brumas pálidas da noite. No corredor, surpreendo-me com a imagem de perfil que aparece no espelho. Estaco e miro espantado minhas costas: como frágeis folhas de avenca, duas protuberâncias despontam à altura de minhas escápulas.